Mãos de Fumo e Lama

MÃOS DE FUMO E LAMA pelo Grupo de Teatro Esteiros  - Alhandra

A partir das obras de Soeiro Pereira Gomes ESTEIROS e ENGRENAGEM
Adaptação e encenação de João Santos Lopes

GRUPO TEATRO ESTEIROS - 2010/Out



Esteiros. Minúsculos canais, como dedos de mão espalmada, abertos na margem do Tejo. Dedos de mãos avaras dos telhais que roubam nateiro às águas e vigores à malta. Mãos de lama que só o rio afaga. (Narrador)


PERSONAGENS

AUTOR / NARRADOR
MESTRE DO TELHAL (homem duro, que chefia o trabalho no Telhal)
GINETO (rapaz em idade escolar que trabalha no Telhal)
SAGUI (rapaz em idade escolar que trabalha no Telhal)
MALESSO (rapaz em idade escolar que trabalha no Telhal)
GUEDELHAS (rapaz em idade escolar que trabalha no Telhal)
MADALENA (mãe de João (Gaitinhas))
HOMEM (homem que cumprimenta Madalena na rua)
MULHER (mulher que cumprimenta Madalena na rua)
TI ROSA (velha, coxa, amiga de Madalena)
JOÃO (GAITINHAS) (filho de Madalena, em idade escolar)
MESTRE MATEUS (encarregado das obras da nova fábrica)
TI PAULINA (dona da taberna – estalagem)
AMARO (rapaz da terra que procura trabalho na fábrica)
FARISEU (moço andrajoso recém-chegado)
MANUEL CHIBARRO (camponês que vende as terras e vai para a fábrica)
CHICO MOLEIRO (camponês que vende as terras e vai para a fábrica)
ZÉ LÉRIAS (camponês pobre, mas que não vende as terras)
DR. MOREIRA (principal responsável da fábrica)
RITA (mulher de Zé Lérias)
TOPÓGRAFOS (2 técnicos que trabalham nas obras da fábrica)
MÉDICO (homem, antigo idealista, agora conformado)
ROSETE (rapariga da barraca de tiro)
FEIRANTE (homem da barraca das bolas)
RAPARIGA (moça que vende queijadas pela Feira)
ENGENHEIRO (Henri, engenheiro francês da Fábrica)
ZÉ VICENTE (dono do telhal)

NOTA DE ENCENAÇÃO: Sob o fundo sonoro do discurso de Salazar na comemoração, em Braga, dos 10 anos do golpe militar de 28 de Maio de 1926 – “Não discutimos Deus e a virtude, não discutimos a Pátria e a sua História, não discutimos a Autoridade e o seu prestígio, não discutimos a Família e a sua moral, não discutimos a glória do Trabalho e o seu dever... – passam IMAGENS DO RIO TEJO, BATEIRAS, MARGENS, PESCADORES.


CENA 1 - NO TELHAL GRANDE [MESTRE DO TELHAL]

CENA 2 - NO BECO DO MIRANTE, MADALENA ESTÁ À JANELA [Madalena, doente, está à janela, olhando a rua. Tem numa mão um lenço, já sujo de sangue, com que limpa a boca. Passam duas mulheres, suas antigas companheiras, que vão trabalhar. Acenam-lhe e falam baixo.]

CENA 3 – NO QUARTO DE MADALENA [Surge João, filho de Madalena. Traz uma gaita de beiços numa mão e uma sacola a tiracolo. Mostra à mãe as botas rotas que traz calçadas.]

CENA 4 - NA TABERNA – ESTALAGEM DE TI PAULINA [Na taberna estão Ti Paulina, dona do estabelecimento, Manuel Chibarro, um camponês de farta barba grisalha que segura uma enxada, Chico Moleiro, outro camponês pobre, Amaro, rapaz da terra, e Fariseu, um jovem desconhecido. Entra Mestre Mateus, encarregado da fábrica nova da vila. Assobia estropiadamente uma ária famosa de uma ópera italiana. Traz um jornal debaixo do braço.]

CENA 5 - NA TABERNA - ESTALAGEM DE TI PAULINA [Os mesmos da cena anterior, menos Mestre Mateus, mas com Zé Lérias. Este está no meio da cena e abre os braços.]

CENA 6 - CASA DE ZÉ LÉRIAS E RITA [Zé Lérias está sentado na soleira da porta, com uma tigela de sopa na mão e uma colher. Parece alheado, não come. Surge Rita, sua mulher.]

CENA 7 - NA TABERNA – ESTALAGEM DE TI PAULINA [Na taberna estão Ti Paulina, ao balcão, Chico Moleiro, Manuel Chibarro, Amaro e Fariseu numa mesa a jogar dominó, e os dois Topógrafos que observam o jogo. Noutra mesa, sozinho, lendo um jornal, está Mestre Mateus. Entra Zé Lérias. Vai até ao balcão. Os Topógrafos, ao verem Zé Lérias entrar, baixam as cabeças procurando passar despercebidos.]

CENA 8 - NO TELHAL GRANDE [Vários miúdos fazem algazarra, vão dando empurrões e encontrões uns nos outros, calduços, etc : GINETO – SAGUI – MALESSO – GUEDELHAS.]

CENA 9 - EM CASA DE MADALENA [Madalena está no quarto, acamada. O Médico foi vê-la e está a auscultá-la. Surge João. Na parede está um retrato de Pedro, marido de Madalena.]

CENA 10 - NA TABERNA – ESTALAGEM DE TI PAULINA [Mestre Mateus e Fariseu estão sentados numa mesa. Falam baixo. Ti Paulina tenta ouvir a conversa, enquanto vai limpando copos.]

CENA 11 - NA CASA DE ZÉ LÉRIAS E RITA [Noite. Som de cães a ladrar. Zé Lérias sai de casa de candeeiro e espingarda na mão. Olha atentamente em redor. Vê algo e chama Rita.]

CENA 12 - NA FEIRA [Som de carrossel, anúncios do circo, pregões e vozes de pessoas animadas: Os rapazes do Telhal chegam e Gineto vai logo até à barraca do tiro. Ao vê-lo, Rosete insinua-se de imediato ao rapaz. Malesso fica na barraca ao lado a atirar bolas a latas, observado por Guedelhas e Sagui. Este, ( SAGUI ) assim que vê a rapariga das queijadas, que circula pela Feira com uma bandeja suspensa pelo pescoço, não tira os olhos dela.]

CENA 13 - NA FÁBRICA [Por entre destroços do incêndio, estão Doutor Moreira e Mestre Mateus.]

CENA 14 - OS NOVOS MÉTODOS DE TRABALHO
“O novo engenheiro francês, sempre apareceu. Todos o cumprimentavam, sem que ele correspondesse, como se a saudação fosse ali um gesto inútil, e logo começou a falar na organização do trabalho, as tarefas especializadas, os gestos úteis, os gestos inúteis, a cronometragem das tarefas, os prémios de produtividade, tudo termos muito difíceis e arrevesados que os homens não percebiam, mesmo com Amaro a traduzir à maneira dele. Apenas fixaram que havia prémios, enquanto Mestre Mateus, de boca entreaberta, dizia a tudo que sim, com a cabeça, certo de que estava em jogo o seu destino.”

CENA 15 – NO BECO DO MIRANTE
[Madalena está no seu quarto, deitada na cama. Ti Rosa e João Gaitinhas estão junto dela. Madalena tosse constantemente e fala já com bastante dificuldade.]
"É Primavera, mas há dois dias que o Gaitinhas não põe o pé na rua, desde que o médico veio auscultar a mãe, a rogo de Ti Rosa. Ficou ainda à espera que ele rabiscasse no papel a receita que depois iria aviar, num pulo, á farmácia. Mas o médico sacudiu a cabeça duas vezes e foi-se tal como viera. Ti Rosa escondeu as lágrimas no avental, e Gaitinhas pressentiu então uma grande desgraça. Todo o Beco do Mirante assistia em recolhimento aquela lenta agonia, e até o sol veio debruçar-se nos beirais, pálido e triste. Um sol de Primavera."


CENA 16 - NA TABERNA – ESTALAGEM DE TI PAULINA
"Da velha aldeia rural, já nada restava. A fábrica tinha tresloucado tudo e todos. Borges Serralheiro fizera-se construtor e já prometera loja de fama, com pensão e retiro de jogos. Com medo do concorrente, Ti Paulina recontava as economias e projectava obras na taberna, todos os dias adiadas. Só Zé Lérias continuava na sua teimosia, não vendendo as terras. Para piorar as coisas, o fumo e o pó negros da fábrica queimava as plantas da horta. Tudo o que Zé Lérias plantava morria logo a seguir. Para ele, a fábrica era uma maldição."

CENA 17 – NO TELHAL UM ANO DEPOIS
"Um ano após outro, quando regressa o Verão e reabrem de novo os telhais, os valadores estendem-se lado a lado, sobre as esteiras da loja que foi cortelho no Inverno. Vêem o rio, brilhante como espelho, e os dedos longos dos esteiros, transfigurados em courelas de pão e arroz. Fecham os olhos e sonham. E o luar vem de mansinho afugentar sombras e ratos."

GINETO
A nós nunca mais põe a canga, ouviu? [Para os amigos.] Venham. Vamos todos nadar para o rio. [Os miúdos saem de cena a correr, ficando o mestre caído no chão.]

NARRADOR
"Setembro. Brilha ainda o sol, nos últimos dias de Verão, mas o vento já e mais frio e sibilante. No telhal respira-se um ar de abandono confrangedor, como em certas casas desabitadas, que conservam dos últimos moradores um objecto inútil, por exemplo, uma cadeira partida, no meio das salas nuas. Tudo começou quando o Senhor Castro, dono do terreno onde Zé Vicente tinha o telhal, lhe fez uma visita de surpresa, acompanhado de mais dois senhores desconhecidos. Estes começaram por elogiar o estilo árabe do telhal, a sua antiguidade, e disseram até que era uma indústria muito interessante. Só que o Senhor Castro logo retorquiu que aquilo já não dava nada, que noutros tempos quando se fabricava telha portuguesa ainda valia a pena, porque o fabrico não chegava para as encomendas, mas que agora havia processos modernos, outros materiais…enfim, indústria pobre, e foram todos embora, deixando Zé Vicente apreensivo, roído de suspeita de certos boatos, que se vieram a confirmar poucos dias depois: O Senhor Castro tinha vendido o terreno à Fábrica Grande, por trezentos contos de réis. Como Zé Vicente ainda tinha uma série de rendas em atraso, de nada lhe valeram os pedidos. Tinha um mês para pagar as rendas em dívida, senão nem a compensação pelo prejuízo do fim do negócio receberia. Quando souberam da venda, os moços ficaram muito satisfeitos, porque julgaram que agora é que entravam para a Fábrica Grande, mas depressa veio o desânimo. E na última noite do mês, sem ninguém saber como, o telhal ficou em labaredas, destruindo tudo o que restava. Por fim o camartelo da Fábrica escaqueirou as paredes já esventradas do forno. Quanto a Gaitinhas, ainda não tinha conseguido comprar as botas novas, porque só tinha juntado nove mil réis. E Gineto já tinha sido preso e manietado pela Guarda Republicana, por causa da navalhada dada no Mestre do Telhal. Mas Gineto não dorme, antes congemina fugas heróicas e pensa que os seus companheiros o irão salvar. Uma voz canta, mesmo por baixo da janela : Gineto, Gineto; e Gineto responde: Gaitinhas, Gaitinhas… No largo da vila já há armações para a Feira, e ele quer voltar a ver Rosete na barraca de tiro: Mas a voz afasta-se. Gaitinhas vai com o Sagui, o Guedelhas e o Malesso correr mundo, à procura do pai. E quando o encontrar, virá então dar liberdade ao Gineto e mandar para a escola aquela malta dos telhais – moços que parecem homens e nunca foram meninos."


Fim